Produzido no Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro - ISERJ. Nosso e-mail: cidadeeducativa@googlegroups.com

30 de julho de 2012

Seminário Internacional Cidades, futuros possíveis

Entre os dias 16 e 17 de agosto, a Casa da Ciência, na UFRJ, será território aberto ao urbanismo, filosofia, economia, artes, antropologia e arquitetura, num diálogo sobre diferenças étnicas, sociais e econômicas nas metrópoles do mundo globalizado, em particular da América Latina.

Com palestra de abertura de Gonzalo Aguilar, o programa vai reunir pensadores, acadêmicos, representantes de organizações públicas e privadas e profissionais que atuam na prática em busca de soluções para os impasses e dilemas que permeiam a vida nas grandes cidades.

Em sua terceira edição, o seminário internacional Cidades, Futuros Possíveis é um espaço que contribui para o debate da sustentabilidade, detectando vias de trocas de conhecimento e experiências, bem como estimulando ações colaborativas nos âmbitos das políticas públicas e das iniciativas da sociedade civil.

Confirmações e inscrições pelo e-mail seminario.cidades@gmail.com

Brasil menor, Brasil vivo!

Os debates desta série, para quem se interessa pela cidade e pelas possibilidades de realizar nela um trabalho político e criativo, são de altíssimo nível. Vale a pena. Nesta edição, a junção entre filosofia, arte e geografia promete.

9 de julho de 2012

Convocação

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Bia Albernaz
Ontem, na Aldeia Maracanã, ao final de um ótimo dia de filmagens, o casal Urutau e Potira Guajajara nos convocou para uma roda de despedidas. Nos convidou a ritualizar nosso encontro e nossa partida. Nos colocamos em torno de uma fogueira simbólica, um tronco com grafismos vermelhos. Com um leve sorriso nos lábios e  nos olhos, Guajajara começou a falar da dor indígena, enquanto Potira falava às mães. Ela dizia que aquele tesouro não pertencia a uma só raça, nem a uma ou outra etnia, que ele era de um povo só, formado por nossos filhos. Em dueto, os dois cantavam o amor. Entardecia. O céu estava vermelho. Ao lado, o perfil do Maracanã, monstro devorador? Maracanã é um pássaro. Entoamos e dançamos com Guajajara dois cantos, um da arara amarela e outro do beija-flor. Quem pode com tanta candura? Por que não se entregar à beleza e dizer sim às criaturas todas, que somos nós em comunidade?

Talvez seja preciso interromper o relato para refletirmos os elos dessa corrente.

Sou uma escritora ou pelo menos faço força para isto. A literatura e a poesia são meus óculos. Por isso, me inquietei, quando Guajajara nos convocou, a todos os visitantes, a escrevermos sobre aquele lugar e sobre a luta para mante-lo em funcionamento como um Centro de Cultura Indígena, ainda que em ruínas e sob o abandono governamental. Não pude deixar de fazê-lo, de escrever, de buscar espalhar por aí a notícia de que aquele lugar ameaçado não pode simplesmente morrer. Essa morte, em prol de não-sei-que interesses medíocres, não deve acontecer. Corre a notícia de que o governador já se declarou a favor da demolição do prédio. Mas, diz Guajajara, a Rede espalha boatos. Ela cria realidades virtuais. A Rede tem poder. Usem a Rede para espalhar a notícia de que a Aldeia Maracanã é um lugar de todos, da nossa cultura, de nossos povos, dos originários.

Esta escrita responde a um chamado.

De um modo breve, relato a minha experiência. Sempre me interessei pela arte de comover outras experiências, de fazê-las reverberar, converterem-se em outras, numa cintilação constelativa. A comoção que senti na Aldeia Maracanã converte-se aqui em voto pela conservação do prédio que já foi o Museu do Índio, mas não só do prédio, mas de toda a área incluída no mesmo ato de doação dessa terra à causa indígena. (A história do lugar é longa e não daria para conta-la aqui.)

Por que ainda lutamos por propriedade? Nossa legislação às vezes parece caduca, escrita para a eficiência de um regime que combina conservadorismo colonial e destrutivismo progressista. Se não existe, é preciso criar uma lei que legitima a apropriação congregadora, e não segregadora.

Não escrevo leis. Especificamente, nesta história, escrevo sob a força do inesperado.

Meu campo de estudos na educação é a cidade. Cidade. Favela. Trânsitos, fluxos, praças, muros, ruas, destructos, constructos, ininterruptos. Com um projeto sobre a aprendizagem nas ruas, procuro realizar gestos que ajudem a romper a barreira entre a escola e a cidade. Visualizo canais, canalículos de respiração mútua. Mas sei da minha fraqueza, preciso de companhia de quem busca o mesmo, um modo de trazer arte à educação, um sentido artístico no exercício da docência. Foi assim que, inesperadamente, a professora Cida Donato me fez o convite, de trabalharmos juntas num projeto na Aldeia Maracanã com o Urutau Guajajara. Cida acabou em um outro caminho e eu me vi, de repente, frente a frente com indígenas no espaço urbano.

Encenou-se uma dança de espelhos entre “eles” e “nós”, porque logo me pus no coletivo. Isso é comum, ao ouvi-los. Sou parte de uma comunidade por vir.

Na Rede, é preciso abrir buracos, tanto quanto delimita-los. Pela Rede, colhem-se e espalham-se sementes de texto que germinam em dialetos brotantes, pela força de um eco autoalimentador e labiríntico. Este texto é uma semente de textos. Joga-se na Rede como uma voz, da qual às vezes só se escuta parte – o começo ou o fim, ou uma continuação da Roda compartilhada com o povo na Aldeia Maracanã.

Ruínas. O Rio de Janeiro poderia inaugurar um novo parque das ruínas. Atualmente, são os indígenas os cuidadores dos nossos parques e ruínas. Indígenas que perambulam, como nós. Somos originários, nós também. Podemos ser também da luta. Seres da utopia? Da ilusão? Da fantasia?

Não sou praticante, nem adepta de nenhuma religião. Renego qualquer interferência da religião na política. A religião é uma fantasia também. E vice-versa. A fantasia também é uma religião. A ciência, festejada com a descoberta da chamada partícula de Deus, também pode ser religião, ou fantasia. O que o encontro com a Aldeia Maracanã me propõe não é nada disso; é uma revolução. E não se pondera a aceitação do desejo de uma revolução. As cartas estão na mesa, ou melhor, nas ruas.

Ontem (que dia cheio!) passei pelo colégio Pedro II, onde li numa faixa que os alunos estão em greve por amor à educação. Não acredito mais em nenhum discurso à favor da educação. Nem mesmo o mais belo. Não acreditem no meu, caso daqui se exale algum proselitismo, alguma outra intenção diferente da literária. Sou poeta, professo a poesia e,  se não posso, poetizo a profissão. Mas também e por isso mesmo sou professora, e habitante dessa cidade, cidadã, e educadora, mãe, mulher, descendente de imigrantes ibéricos, de fantasias e sabe-se lá de quantos golpes. É, portanto, na qualidade de escriba que passo e encerro este texto, novamente com a fala na Roda, ao final do dia de ontem, um dia intenso de gravações e projeções de imagens nas paredes em ruínas do antigo prédio do museu do Índio.

Levem os equipamentos, as mochilas, as sacolas. Guajajara e Potira nos convocam. Respondi com um tímido agradecimento pela hospitalidade (foi um verdadeiro milagre da multiplicação dos peixes nas folhas de bananeira). Um dia na Aldeia se encerrava. Alguns ainda ficaram para fazer grafismos com jenipapo nos braços. No próximo encontro, vai haver contação de história. Talvez a da arara amarela. E há o mercadinho, onde se falam várias línguas e pode-se saber da história de várias tribos, etnias. São mais histórias do que as de Roma. São caminhos que nos levam a essa e a outras cidades possíveis.

O Rio de Janeiro sob os olhos de uma escrava livre

Vista do Aqueduto da Carioca (Leandro Joaquim, c. 1790). A lagoa, em primeiro plano, foi aterrada para a construção do Passeio Público. O edifício no alto do morro é o Convento de Santa Teresa.
Cris Vianna
Meu nome é  Anastácia. Fui escravizada. Nasci em 12 de maio de 1741 na Bahia. Porém vivi a maior parte da minha vida em Minas gerais. Um belo dia, cansada de tudo, de tanto sofrimento, me escondi em um navio e fui parar em São Sebastião do Rio de Janeiro.

Logo que cheguei me encantei com o Aqueduto da Carioca, obra linda, pomposa! Nunca tinha visto tanta engenhosidade! Quanta água!

De lá fui até o Largo da Carioca para ver ao menos de longe a igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência e o convento de Santo Antônio. Infelizmente fui impedida de entrar... O lado de fora era belíssimo. Todo cheio de detalhes.

Parti para o Rossio, pois no navio ouvi dizer que muitos escravos se encontravam lá aos domingos, em seus poucos momentos de lazer, e foi aconchegante tudo que presenciei ali. As danças, os ritmos, que alegria! De lá, fui arrastada pelo povo até um local ali perto, chamado de campo de Sant’Anna. Lá , a alegria aumentou. A população estava  em círculos amplos, formados cada um por trezentos a quatrocentos irmãos escravos, homens e mulheres. Dentro desses círculos, os dançarinos moviam-se ao som da música, e não sei qual a mais admirável, se a energia dos dançarinos, ou a dos músicos.

Fiquei sabendo da existência de uma igreja criada pela irmandade negra, os que foram libertos, localizada na rua da Vala. Não acreditei. Pude entrar em uma Igreja sem ser expulsa! De lá, passei pela rua Aleixo Manoel e segui em direção à rua Direita, local do mercado negreiro. Me entristeci ao ver tantos irmãos sendo tratados como animais, presos e humilhados. Muito desamor! Estava chorando quando ouvi um menino gritando sobre a inauguração do primeiro Teatro do Rio de Janeiro. Pensei, isso me fará feliz.

Corri para o Largo do Paço, onde vi uma construção linda de morrer. Não sabia o que era, mas quando perguntei me disseram que se tratava da residência do rei da colônia. Fiquei olhando... Não acreditei. Então os atores chegaram e a apresentação começou: eram animados e imitavam a realeza, com trajes e pinturas engraçadas. Tratava-se de uma companhia de teatro portuguesa que inaugurava o Teatro Manuel Luiz no ano de 1798. Foi o dia mais feliz da minha vida.
A ópera Guerras de Alecrim... parodiava a ópera italiana. O título da peça se explica pelo costume de as moças casadoiras se reunirem em blocos que tinham por insígnia uma flor. Seu autor, Antônio José da Silva foi condenado em 1739 pelo Santo Ofício como judaizante. Amarrado a um poste, degolado e atirado às labaredas.
Negros dançando fandango (jongo) no Campo de Santana,
Rio de Janeiro, Brasil (1822) - Obra atribuída a Augustus Earle
Jogando capoeira
Vista do Rossio (atual Praça Tiradentes, com o pelourinho ainda de pé. Debret (1834)
Festa de Nossa Senhora do Rosário, de Carlos Julião. In: Riscos illuminados de figurinhos de broncos e negros dos uzos do Rio de Janeiro e Serro Frio.
Rua Direita (atual Primeiro de Março), de Johan Moritz Rugendas