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9 de julho de 2012

Convocação

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Bia Albernaz
Ontem, na Aldeia Maracanã, ao final de um ótimo dia de filmagens, o casal Urutau e Potira Guajajara nos convocou para uma roda de despedidas. Nos convidou a ritualizar nosso encontro e nossa partida. Nos colocamos em torno de uma fogueira simbólica, um tronco com grafismos vermelhos. Com um leve sorriso nos lábios e  nos olhos, Guajajara começou a falar da dor indígena, enquanto Potira falava às mães. Ela dizia que aquele tesouro não pertencia a uma só raça, nem a uma ou outra etnia, que ele era de um povo só, formado por nossos filhos. Em dueto, os dois cantavam o amor. Entardecia. O céu estava vermelho. Ao lado, o perfil do Maracanã, monstro devorador? Maracanã é um pássaro. Entoamos e dançamos com Guajajara dois cantos, um da arara amarela e outro do beija-flor. Quem pode com tanta candura? Por que não se entregar à beleza e dizer sim às criaturas todas, que somos nós em comunidade?

Talvez seja preciso interromper o relato para refletirmos os elos dessa corrente.

Sou uma escritora ou pelo menos faço força para isto. A literatura e a poesia são meus óculos. Por isso, me inquietei, quando Guajajara nos convocou, a todos os visitantes, a escrevermos sobre aquele lugar e sobre a luta para mante-lo em funcionamento como um Centro de Cultura Indígena, ainda que em ruínas e sob o abandono governamental. Não pude deixar de fazê-lo, de escrever, de buscar espalhar por aí a notícia de que aquele lugar ameaçado não pode simplesmente morrer. Essa morte, em prol de não-sei-que interesses medíocres, não deve acontecer. Corre a notícia de que o governador já se declarou a favor da demolição do prédio. Mas, diz Guajajara, a Rede espalha boatos. Ela cria realidades virtuais. A Rede tem poder. Usem a Rede para espalhar a notícia de que a Aldeia Maracanã é um lugar de todos, da nossa cultura, de nossos povos, dos originários.

Esta escrita responde a um chamado.

De um modo breve, relato a minha experiência. Sempre me interessei pela arte de comover outras experiências, de fazê-las reverberar, converterem-se em outras, numa cintilação constelativa. A comoção que senti na Aldeia Maracanã converte-se aqui em voto pela conservação do prédio que já foi o Museu do Índio, mas não só do prédio, mas de toda a área incluída no mesmo ato de doação dessa terra à causa indígena. (A história do lugar é longa e não daria para conta-la aqui.)

Por que ainda lutamos por propriedade? Nossa legislação às vezes parece caduca, escrita para a eficiência de um regime que combina conservadorismo colonial e destrutivismo progressista. Se não existe, é preciso criar uma lei que legitima a apropriação congregadora, e não segregadora.

Não escrevo leis. Especificamente, nesta história, escrevo sob a força do inesperado.

Meu campo de estudos na educação é a cidade. Cidade. Favela. Trânsitos, fluxos, praças, muros, ruas, destructos, constructos, ininterruptos. Com um projeto sobre a aprendizagem nas ruas, procuro realizar gestos que ajudem a romper a barreira entre a escola e a cidade. Visualizo canais, canalículos de respiração mútua. Mas sei da minha fraqueza, preciso de companhia de quem busca o mesmo, um modo de trazer arte à educação, um sentido artístico no exercício da docência. Foi assim que, inesperadamente, a professora Cida Donato me fez o convite, de trabalharmos juntas num projeto na Aldeia Maracanã com o Urutau Guajajara. Cida acabou em um outro caminho e eu me vi, de repente, frente a frente com indígenas no espaço urbano.

Encenou-se uma dança de espelhos entre “eles” e “nós”, porque logo me pus no coletivo. Isso é comum, ao ouvi-los. Sou parte de uma comunidade por vir.

Na Rede, é preciso abrir buracos, tanto quanto delimita-los. Pela Rede, colhem-se e espalham-se sementes de texto que germinam em dialetos brotantes, pela força de um eco autoalimentador e labiríntico. Este texto é uma semente de textos. Joga-se na Rede como uma voz, da qual às vezes só se escuta parte – o começo ou o fim, ou uma continuação da Roda compartilhada com o povo na Aldeia Maracanã.

Ruínas. O Rio de Janeiro poderia inaugurar um novo parque das ruínas. Atualmente, são os indígenas os cuidadores dos nossos parques e ruínas. Indígenas que perambulam, como nós. Somos originários, nós também. Podemos ser também da luta. Seres da utopia? Da ilusão? Da fantasia?

Não sou praticante, nem adepta de nenhuma religião. Renego qualquer interferência da religião na política. A religião é uma fantasia também. E vice-versa. A fantasia também é uma religião. A ciência, festejada com a descoberta da chamada partícula de Deus, também pode ser religião, ou fantasia. O que o encontro com a Aldeia Maracanã me propõe não é nada disso; é uma revolução. E não se pondera a aceitação do desejo de uma revolução. As cartas estão na mesa, ou melhor, nas ruas.

Ontem (que dia cheio!) passei pelo colégio Pedro II, onde li numa faixa que os alunos estão em greve por amor à educação. Não acredito mais em nenhum discurso à favor da educação. Nem mesmo o mais belo. Não acreditem no meu, caso daqui se exale algum proselitismo, alguma outra intenção diferente da literária. Sou poeta, professo a poesia e,  se não posso, poetizo a profissão. Mas também e por isso mesmo sou professora, e habitante dessa cidade, cidadã, e educadora, mãe, mulher, descendente de imigrantes ibéricos, de fantasias e sabe-se lá de quantos golpes. É, portanto, na qualidade de escriba que passo e encerro este texto, novamente com a fala na Roda, ao final do dia de ontem, um dia intenso de gravações e projeções de imagens nas paredes em ruínas do antigo prédio do museu do Índio.

Levem os equipamentos, as mochilas, as sacolas. Guajajara e Potira nos convocam. Respondi com um tímido agradecimento pela hospitalidade (foi um verdadeiro milagre da multiplicação dos peixes nas folhas de bananeira). Um dia na Aldeia se encerrava. Alguns ainda ficaram para fazer grafismos com jenipapo nos braços. No próximo encontro, vai haver contação de história. Talvez a da arara amarela. E há o mercadinho, onde se falam várias línguas e pode-se saber da história de várias tribos, etnias. São mais histórias do que as de Roma. São caminhos que nos levam a essa e a outras cidades possíveis.

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