Produzido no Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro - ISERJ. Nosso e-mail: cidadeeducativa@googlegroups.com

14 de abril de 2013

Livro urbano

Fernanda Vallim 
  •         Centro do Rio de Janeiro. Arranha-céus. Construções tombadas. Apesar de a modernidade alterar a paisagem das cidades, alguns patrimônios históricos ainda são preservados na tentativa de manter vivas as lembranças da história de um povo. Cada rua tem um nome, uma biografia, um pedaço da memória da cidade. Podem até ser parecidas, ter construções da mesma época, mas as recordações e as pessoas que por uma rua passaram nunca serão as mesmas. 
              Andar pela Praça XV e avistar o Paço Imperial é ter a certeza de que as histórias aprendidas na escola realmente aconteceram. Olhar para essa construção é entrar em contato com as conquistas do passado – lembrar-se da chegada da Família Real em 1808, do “Dia do Fico” e do fim da escravidão, já que nesse espaço foi assinada a Lei Áurea. A memória que as edificações antigas carregam ajuda o povo a não esquecer como se deu o processo de formação e de construção de sua identidade.
  •  Paço Imperial na Praça XV - RJ
  •          Muitas vezes as mudanças escondem um passado que se deseja esquecer. A Avenida Rio Branco foi construída durante a Reforma Urbana de Pereira Passos, numa tentativa de modernizar e civilizar a urbe, escondendo a pobreza e a escravidão. Destruir uma rua é apagar parte da história da cidade e dar espaço para que uma nova seja escrita por cima dela. Desse modo, a cidade deixa de guardar lembranças de um tempo antigo, restando apenas àqueles que viveram na época e aos que virem em fotos o retrato de um tempo às vezes muito diferente da realidade em que vivemos.
Foto: Cezar Duarte / http://designqualidade.blogspot.com.br/
  •           A cidade mantém um registro de sua realidade, não só pelo tipo de construções, de pessoas, mas também pelos pensamentos manifestados nos muros. O estudioso Leonardo Guelman, especializado nos escritos do Profeta Gentileza, define as obras deste como partes de um livro urbano. Ampliando essa metáfora, podemos considerar a cidade como um grande livro cujas ruas são as páginas que o compõem. Páginas que ficam expostas para seus cidadãos-leitores que também são coautores.  
              Devemos preservar alguns capítulos desse livro para que outros leitores, de outras gerações, possam lê-lo e ter um contato real e direto com o passado de sua cidade, que de certa forma, também é parte do passado deles. Logo, é importante que não só os órgãos públicos e os cidadãos se preocupem com a preservação e manutenção de patrimônios históricos, mas também é necessário arrancar algumas páginas e reescrever alguns trechos do livro, pois um passado deve ser preservado ao mesmo tempo em que também é concedido um espaço ao presente.
Fonte:
http://dreamguides.edreams.it/brasile/rio-de-janeiro

11 de abril de 2013

Precisamos de Rubem Braga para educar a cidade

Bia Albernaz
Rubem Braga foi um autor das cidades por onde passava. Cronista, consertava e concertava o mundo, com o mundo, na superficialidade das coisas, dos acontecimentos singelos e passageiros, revelando-lhes a beleza eterna justamente por serem efêmeros e marcantes, tocantes e reais. É preciso ler e reler Rubem Braga, colocar suas lentes e olhar o mundo do modo acolhedor e leve como lhe era próprio, e assim acolher a vertigem singularizante e deslizante de todas as coisas como significantes.

Clarice Lispector, quando chamada a escrever crônicas no Jornal do Brasil, procurou Rubem Braga e de alguma maneira, a seu modo, guardando o seu próprio estilo, comungou e reverenciou o modo e o estilo braguiano de “tomar conta do mundo”. Braga acompanhava, se responsabilizava amorosamente, cuidava das pessoas pelo simples olhar. Foi assim com o nadador que avistou ao longe e a quem não podia perder de vista até que ele alcançasse o seu destino. Foi assim com a faxineira, vítima de enchente, sobre quem ele procurou notícias num bar, com o padeiro, com uma velhinha passante em Paris, com as margens do rio de sua infância, com um certo conde, com uma borboleta amarela.
Em seu apartamento no Rio de Janeiro, nos anos 1980. Foto: Dulce Helfer (A notícia)

Tomando sua biografia, Rubem Braga é rodoviária, estação das barcas e aeroporto. Com o olhar voltado para o horizonte, é travessia de fronteiras transatlânticas. E é também interior: a paisagem das serras distantes e do mais longínquo espaço mítico.

Rubem Braga é um deslocado por opção, um viajante interiorano que nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, estudou em Niterói e formou-se em Belo Horizonte. Partindo de lá, colaborou com inúmeros jornais e revistas de várias cidades brasileiras, de 1932 a 1990; dentre eles, o Jornal da Tarde, de Belo Horizonte, o Diário Carioca, O Estado de São Paulo, O Globo, o Correio da Manhã, o Diário de Notícias e a revista Manchete. A matéria de seus textos provém de suas andanças e das folhas do jornal. No Rio de Janeiro, cidade que adotou e onde morreu, viveu no Catete, em Copacabana e em Ipanema.

Como correspondente, foi repórter-cronista sem compromisso com “furos”, mas com o efêmero. Rubem Braga conta 60 anos da história de nosso país e de fatos externos, em sua intimidade. Cultura, economia e política na experiência cotidiana, banal. Sem o menor empolamento na linguagem, o autor dinamiza um caminho existencial dentro da cidade. Falar de vento e borboletas, sabiás e mudança de estações talvez seja típico de um tempo bossa-novista, de um olhar impregnado de lembranças, mas revisitar Rubem Braga não pode ser um ato saudosista. Se tomarmos a palavra nostalgia como possibilidade de evocação de um passado mítico, como saudades de um tempo que não se viveu, é mais do que oportuna a leitura de Rubem Braga porque estimula o processo de transcendência, para além das limitações de sua própria vida. Com a pedagogia bragueana, o sujeito começa a enxergar para além do tédio e do desejo do espetacular. Para um tempo de espetacularização da banalidade, Rubem Braga traz a visão simples do extraordinário, e aceitação do simples, sem malabarismos verbais ou imagéticos.

David Arrigucci Jr. se reporta a Walter Benjamin para falar da capacidade de contar experiências que Rubem Braga possui, sem a menor pretensão de ser um “lenitivo para as almas sofredoras”. Há inúmeros exemplos de crônicas suas em que ele rejeita o movimento de leitores que o buscam como conselheiro. Um pouco turrão, a simpatia por ele nasce justamente dessa ausência pedagógica e talvez ele não gostasse da proposta que este texto encerra, que procura convencer do quanto seria bom que os cidadãos do Rio de Janeiro lessem as suas crônicas. Despretensiosas, suas crônicas nos levam para caminhos imprevisíveis, inclusive para caminhos que não levam a lugar nenhum. Fala-se em educação formal, não-formal e informal. Pois ler Rubem Braga ajuda na educação trans-formal, aquela que media uma passagem de uma forma para outra forma, por exemplo, a passagem da visão de uma borboleta para uma crônica escrita sobre ela. Nessa passagem, o visual torna-se plástico; o auditivo torna-se música.
  
Fala-se também muito em consciência crítica mas há uma consciência a que poderíamos chamar de narrativa, quer dizer, uma consciência que aflora no processo de narrar. Implicada nesse processo encontra-se o desenvolvimento de uma faculdade que todos nós temos e da qual lançamos mão todos os dias e a toda hora. Segundo Antonio Cândido, imaginar é uma necessidade humana tão premente quanto comer. Ele disse isso ao defender o direito à literatura. Ou seja: a democracia depende da literatura para se completar. Lendo a paideia grega, apreende-se o modo como a política relaciona-se com as questões de segurança e de conquista, como não se desvincula do teatro, da poesia, da filosofia ou da crônica da história.

Rubem Braga é um cronista paideumático, dentro de uma concepção de paideia formativa da cidadania, de uma visão de educação inerente a todo ato cultural. Jovem, ele reporta o que presencia; idoso, rememoriza o que vivenciou. Pela sua leitura, realizamos a passagem do repórter ao narrador. Mesmo longe de sua cidade natal, a faz renascer em textos que, despreocupados com o factual, remontam ao que cada lugar encerra como potência mítica, pois pela escrita ele ritualiza o seu renascimento, brindando o leitor com a percepção de que cada lugar pode ser uma fonte originária. No dizer de David Arrigucci, Rubem Braga reúne aspectos   psicológicos   e ontológicos, quando volta à sua casa, “ponto de estabillidade”, “enquanto se torna consciente de que tudo flui, corrompendo-se”; “fragmento de duração perdida”, simbolicamente reiluminado pelo fogo do tempo vivido. (2001, p.24)

A fixação de uma imagem torna-a um ponto mandalar que, em meditação ou em sonho, dinamiza a interpenetração de várias outras imagens produzidas no curso de nossas vidas. Tal interpenetração sempre nos leva a um lugar diverso daqueles da onde partimos (e para onde sempre podemos retornar), descobrindo-se raízes e ramificações inesperadas e mesmo desconhecidas dos acontecimentos em nossa memória. Interrelacionar os textos de Rubem Braga a notícias e a lugares possibilita estabelecer a composição de um todo do qual fazem parte aspectos cognitivos, emotivos e sensoriais, ou historiográficos, sensitivos e perceptivos, num movimento a um tempo analítico e sintético de compreensão da complexidade do real. Revisitar os lugares onde ele empreendeu sua leitura de mundo torna o leitor um catalizador do tempo passado no presente, funda o sujeito também ele como um lugar realizador de encontro entre o ético, o estético e o poético.
   
Por isso, pode-se afirmar que ler o Rio de Janeiro, à luz de Rubem Braga,  nos faz compreender melhor as mudanças sociais, culturais, política, econômicas e urbanas pelas quais a cidade passou, de 1930 a 1990. No diálogo de Rubem Braga com o contexto (apreensível em grande parte pela leitura dos jornais com os quais ele colaborou), revela-se um sentido para além daquele específico relacionado com a temática e com a época em que foi escrito o seu texto, na medida em que – armados de um filtro de percepção herdado e transformado pela experiência pessoal – presentificamos meandros dessa história na cidade que ainda habitamos. Rubem Braga pode nos fornecer esse filtro, pode nos fazer recuar na história e geograficamente nos fazer reencontrar com um “outro” Rio que nos leve a melhor identificar “este” no qual nos situamos.

  
Em frente à casa dos Braga, 1984. Foto: acervo Roberto Seljan Braga (Estadão)
Precisamos de Rubem Braga, a bem de nossa cidade, de nossa interação com a natureza, mesmo aquela que se mostra em pleno centro da cidade ou num canteiro de obras.

Referências
ARRIGUCCI JR., Davi. “Onde andará o velho Braga?”. In: Achados e perdidos. São Paulo, Livraria Editora Polis, 1979.

________. “Fragmentos sobre a crônica”. In: Enigma e comentário – ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo//Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004.

Livros de CRÔNICAS de Rubem Braga
O Conde e o Passarinho, 1936; O Morro do Isolamento, 1944; Com a FEB na Itália, 1945; Um Pé de Milho, 1948; O Homem Rouco, 1949; Três Primitivos, 1954; A Borboleta Amarela, 1955; A Cidade e a Roça, 1957; Ai de ti, Copacabana, 1960; O Conde e o Passarinho e O Morro do Isolamento, 1961; Crônicas de Guerra - Com a FEB na Itália, 1964; A Cidade e a Roça e Três Primitivos, 1964; A Traição das Elegantes, 1967;  As Boas Coisas da Vida, 1988;  O Verão e as Mulheres, 1990; 200 Crônicas Escolhidas; Casa dos Braga: Memória de Infância (destinado ao público juvenil); 1939 - Um episódio em Porto Alegre (Uma fada no front), 2002;  Histórias do Homem Rouco; O Menino e o Tuim; Recado de Primavera; Um Cartão de Paris
Sugestão de atividades
1. Leitura das crônicas
2. Seleção de cinco de cada uma das seis décadas
3. Leitura de periódicos e da iconografia da época
4. Seleção de lugares citados
7. Visita aos locais selecionados
8. Criação de uma cartografia bragueana