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5 de maio de 2014

O olhar de quem ainda se espanta

Márcia Fernandes
Como olhar e ver o mundo  à nossa volta?
Para a redescoberta de conceitos e valores, é preciso ver além do óbvio e do que é literalmente visível, é preciso mergulhar na realidade de novos "espantos".
É preciso também repensar o nosso condicionamento de sempre querer concluir, fechar as ideias. Com a ajuda da Filosofia, busquemos a  busca da construção  de novos olhares e conceitos.
Foto original em http://clandestinoinstitut.org/en/author/markus/
           O que é pensar filosoficamente? Qual a relação entre o espanto e o sentimento filosófico? Espantar-se é olhar com propriedade, olhar de olhos abertos, é ver sem pressa, sem formatação pré-estabelecida, é olhar com calma, descompromissadamente e com sentimento sobre as coisas.
            Mas quem, quando e como se olha assim?  O filósofo tem esse olhar com a essência infantil  da descoberta sobre as coisas, as pessoas, os acontecimentos. Ele cultiva esse olhar de perplexidade e admiração, de quem não se acostuma nunca com as mesmas imagens, com a mesmas pessoas e coisas.
             Nos acostumamos a enxergar ao nosso redor de acordo com o estabelecido,  o condicionado. Não exercitamos nossa curiosidade mas os novos tempos nos exigem que voltemos a olhar as coisas com o espanto de quem as vê pela primeira vez, e assim questioná-las, com esse olhar contemplador, que também se maravilha. Mas isso requer uma busca  inquieta e indisciplinar, um pensar e ver sem fronteiras.
                Segundo Stein, "o ser-possuído pelo olhar, o dever-ser-inteiramente-olhar para o que se apresenta, define a essência da admiração". Ou seja, a essência do ato de se admirar está em atentar com olhos não silenciosos, captadores de novas perspectivas e de visões do já visto.
               No filme "A janela da alma", de Wim Wenders, o neurologista Oliver Sacks afirma: "o ato de olhar não se limita ao visível, mas também ao invisível". É olhando além do visível, exercitando os olhos da alma, que construímos uma releitura do mundo. O exercício possível consiste em ver além do óbvio, questionar o visível, provocar o estranhamento.
Para ver o filme, acesse https://www.youtube.com/watch?v=56Lsyci_gwg.
        Também Saint-Exupéry e Ionesco nos incentivam a mergulhar nas infinitas possibilidades de ver, sentir e pensar para  assim ampliar nossas perspectivas, sentimentos e conceitos. Novas imagens nos levam a novas essências. "O essencial é invisível aos olhos", escreveu Saint-Exupéry. "Mergulha, sem limites, no espanto e na estupefação. Deste modo, podes ser sem limites, assim podes ser infinitamente.", defendeu Ionesco.
              Mergulhemos pois  no espanto para a (des)construção do ver. Não permitamos ser  abatidos pela crise que pode nos assolar de uma só vez, tornando-nos taciturnos e acomodados. Debrucemo-nos sobre a construção do olhar da filosofia, que pode nos manter longe do pesado fardo do conformismo e do ser acabado, pré-definido.
              É preciso estarmos atentos aos ladrões e  manipuladores da consciência crítica que nos roubam as possibilidades de ver e nos embriagam de um conformismo autista em relação a uma realidade dada. Não nos deixemos ser "metamorfoseados", tais como "Os rinocerantes" de Ionesco. (1) Filosofemos, busquemos thaumazein (2), não percamos a capacidade de nos admirar. Não nos deixemos ser sugados pela hipocrisia de um olhar  dogmático.
Ver Jessica Friedowitz
           A filosofia é a mola   da  sensação de desconforto  que nos faz  buscar novas repostas para aquilo que nos incomoda ou por aquilo que não mais nos incomoda. Filosofando, transgredimos, especulamos e desconfiamos sempre. Marilena Chauí, em seu livro Convite à filosofia, diz (3): 
se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil;
se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil;
se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil;
se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil;
se dar a cada  um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a felicidade e a liberdade para todos for útil,
então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes.
***
NOTAS
1- A peça "O Rinoceronte", escrita há mais de 40 anos por Ionesco, é ainda bastante atual. Ela conta a história de uma cidade pacata que se transforma após a passagem de um rinoceronte por suas ruas. À medida que a origem do paquiderme é discutida e em alguns casos rebatida, a sua presença, misteriosa e incontrolavelmente, se prolifera, até notarmos que são os próprios cidadãos da cidade que gradualmente se transformam em rinocerontes. Nas entrelinhas, o rinoceronte mostra o conformismo da sociedade. A metamorfose é uma analogia ao processo de mediocrização social pela nossa incapacidade de ir contra as regras impostas e massificadoras, atreladas a um poderio corrupto e ambicioso. Cf. http://www.notaindependente.com.br/materias.php?id=0085
2- Thaumazein é o verbo grego que de modo aproximativo tentamos traduzir como admirar-se, espantar-se. Trata-se de um estado que nos acomete quando nos defrontamos com algo estranho por ser thaumaston, extraordinário, admirável. No diálogo Teeteto, Platão refere-se à esta admiração como um pathos um estado interior que sentimos quando algo nos arrebata. Cf. http://www.fae.unicamp.br/vonzuben/filos.html
3- Convite à filosofia, SP: Ática, 2005, p.24.