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22 de junho de 2015

A aula passada_lembrança de uma oficina literária na favela da Matinha em 2008


Bia Albernaz

 
Favela da Matinha, no Rio Comprido_ foto Lex Moraes
           O portão do “Clube União e Lazer” da favela da Matinha estava trancado. Esta era minha quarta ou quinta aula. Ia uma vez por semana como voluntária para realizar com as crianças do Clube uma oficina de literatura.
            O Clube é um espaço que oferece atividades recreativas às crianças, além de ajudá-las nas tarefas escolares. Umas quinze crianças frequentam regularmente suas atividades. Naquele dia, lá de dentro, algumas meninas haviam pulado o portão e me chamavam. Eram umas quatro ou cinco. Algumas novas, todas mais ou menos da faixa etária de oito a dez anos.
            A uma delas, que se preparava para pular o muro e assim entrar no Clube, eu perguntei: “Fábia, onde é a casa da Lair? A Lair tem a chave.” “Fica lá em cima. Não é muito alto. É perto.” “Tá, eu vou lá. Mas vem comigo me mostrar onde é que é.” “Ah! não, eu não vou não.” Ela era uma menina de menos de oito anos. Disse isso e, segurando a sua sainha de lycra ou cotton, saltou para dentro. Mas outra, de lá, compadeceu-se e fez o caminho inverso. Do alto muro, exclamou:  “Eu te levo, tia.” “Sua calcinha tá furada”, alguém gritou. Ela sentou rápido e caiu de pés juntos perto de mim. Começou a correr e eu atrás. Mas não conseguimos a chave do Clube. Ninguém em casa.
            Que fazer? Resolvi então pular o portão. Pulamos as duas para dentro. Portão vencido, fomos para o terreiro atrás da casa onde fica o Clube. É mesmo um terreiro que ficaria lindo tratado. Horta, não tem. Tem capim, tem as árvores do quintal do vizinho. Bananeiras, goiabeiras... Entre os dois terrenos passa o esgoto. As crianças estão o tempo todo pisando nele. Pra lá e pra cá. Aquele é considerado pelas mães e pelas crianças um lugar de diversão mais ou menos segura.
            Eu andava pelo terreno do Clube mas não podia negar a má impressão que me causou aquela primeira negativa que recebi antes de ir procurar a chave. E agora também. “Vamos na rua onde está a entrada da favela?”, perguntei. E elas, todas: “não”. Lideradas pela Fábia, recusaram-se de maneira tão malcriada que eu falei quase com raiva: “pois então eu vou sozinha. Quem quiser vir que venha.” Quase assim.
          Susana e Magú quiseram vir. Uma menina e um menino tão doces. Deviam ter uns seis anos. Eram os dois menores da turma. Ela meio caboclinha, ele um branquelinho, parecia o meu filho, magrelinho. Demo-nos as mãos e descemos. Descemos a ladeirinha onde biroscas, televisões ligadas, camas cheias de roupa embolada por cima, salão de cabelereiro, formavam a paisagem vista através das janelas coladas às calçadas. Os muitos labirintos por dentro das casas e logo a seguir, a entrada para o asfalto. Na conjunção da favela e do asfalto, o esgoto corria, o lixo acumulava-se e, fiquei pasma, porcos fuçavam.
           Escolhi primeiro o meu personagem pois era assim a atividade: ir à rua e escolher alguém ou algo para figurar como personagem de uma história que iríamos criar em conjunto. Claro, escolhi o porco. Susana escolheu um poste e Magú, um tio que não estava ali. A história final juntou os três personagens, mas foi criada principalmente por Magú, que contava um episódio do seu tio contra policiais malvados. O tio levou a melhor porque tinha uma motocicleta superpotente. (A escolha do herói por Magú ocupou um sessão de análise, resultou neste relato e agora vem à luz, com o desejo de fazer a gente pensar sobre as crianças na cidade do RJ e também sobre a velha brincadeira polícia-e-bandido. Cris Muniz me fez ler um texto de Walter Benjamin que se relaciona com esse caso. Trata do teatro proletário, encenado pela criança enquanto brinca.)              

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